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Por: Sérgio Raimundo

livro panzaLi o livro “Pandza” de Hélder Faife, que me ofereceu ano passado. Trata-se de um livro, riquíssimo, de crónicas; digo, ousadamente, que não se tratam de simples crónicas. São crónicas que transcendem o que as habituais crónicas trazem-nos. São, esses textos, pós- crónicas. Uma transposição do que é habitual tomar como crónica. Hélder Faife é um mestre da escrita. Escreve como vive e vive como escreve. Trata-se, usando a linguagem do meu favorito filósofo (RICHARD RORTY – Filósofo Maiúsculo), de um escritor edificante, pois é reactivo e oferece sátiras, paródias, aforismos e sabe que seu trabalho perde o propósito quando o período contra o qual está reagindo termina. Um escritor edificante, como Hélder Faife, preserva a criatividade individual e desperta a sensibilidade do homem para as questões de seu tempo. Faife é um escritor intencionalmente periférico e destrói em benefício de sua própria geração.

Ora! Durante a leitura desse livro, um texto chamou-me atenção: “Nkenhu”; que numa tradução livre quer dizer cão vira-lata. Nesse texto, Faife, retrata, com muita mestria na narração e comparação, a vida de um homem que quase perdeu a direcção dos ponteiros da vida; um sujeito que se sente projectado no mundo, na sociedade, vivendo de acordo com aquilo que consegue ter, depois de lamber botas dos seus superiores.

Trata-se, pode-se dizer, dum sujeito que alienou a sua liberdade nas dificuldades que o cercam. Um homem que vive numa conjuntura social, asfixiada pela força do económico. Sentindo-se transformado, deste modo, em um cão. Um vira-lata autêntico. O que me veio à cabeça, depois de ler o texto, foi a filosofia de Jean-Paul Sartre. E logo começo.

“Eu sinto-me um daqueles cães reles, magros, sem raça nem graça, de rabo encolhido entre as patas, pêlo pálido, olhar covarde, a ganir mais do que ladra, um revirador de latas, ou habitando o fundo inglório de um quintal. Um Nkenhu”. Aqui se pode deduzir o posicionamento sartreano de que quando o homem não tem mais objectivos, o mundo torna-se privado de sentido.

Os caminhos revelam-se-nos simples becos que nos levam a incertezas e convulsões. Descobrimos que o mundo é privado de sentido na experiência da náusea. A náusea de Sartre é um sentimento que nos invade quando descobrimos a contingência essencial e o absurdo do real. A continência enquanto o carácter de tudo aquilo que é concebido como podendo ser ou não ser, ou ser algo diferente do que é, guia o personagem nas suas incertezas: “a rotina conforta-me porque me transmite segurança. Os mesmos actos, mesmos itinerários, a mesma vida, dão-me a ilusão de que tudo vai ter o mesmo desfecho, que um dia vai ser tal como o outro”.

E o personagem, de Faife, mergulha na náusea. Como ele próprio declara: “Mergulhei na solidão da noite, fui revirando as barracas da cidade e focinhando o cio na traseira das cadelas que se vendiam à beira da estrada”. O enjoo moral, as crises diárias, o salário magro, o desânimo, o remorso inexplicável, a autenticidade canina na carne humana são marcas que privam o sentido da vida do personagem. Nenhum objectivo consegue orientar esse personagem que Faife exprime. Sob o pressuposto da náusea de Sartre o personagem do “Nkenhu” existe como uma coisa isolada. Essa mesma experiência, de náusea, conforme refere a filosofia de Sartre, torna o sujeito um ente sem sentido, cancelando de repente o sentido de todas as coisas.

Se o personagem de Faife vive a experiência de náusea de Sartre – o que revela a gratuidade das coisas e do homem reduzido a coisa e submerso nas coisas; outrossim, tenta sob toda essa falta de sentido da vida projectar-se, ou seja, na linguagem de Sartre entra firme, e guiado por si mesmo, nessa aventura absurda que é a vida. O personagem projecta-se, continuamente além de si mesmo como que para poder tornar-se Deus. Basta observar a seguinte passagem: “aos poucos, a minha cumplicidade com os copos foi remediando o meu ânimo. Aquela timidez de vira-lata aos poucos transmutou-se para latidos ferozes de um falador que debatia com autoridade de tudo um pouco. Falava de política e dos políticos, do futebol e da bola, da sociedade e do mundo, e tinha opinião sábia para tudo”.

O personagem, do autor de “Pandza”, que é homem, que também na linha de Sartre é um ser-para-si e consequentemente ser-para-outros. Ser-para-outros quando se toma o outro como sendo aquele que invade a nossa subjectividade pelo seu olhar, transformando-nos assim em simples objectos do seu mundo. E outro em grande parte inquieta o personagem de Faife. Instrumentaliza-o. O outro para Sartre não é aquele que é visto por nós, mas sim aquele que nos vê. A filosofia do outro de Sartre revela-se na seguinte passagem: “quando cheguei a casa endireitei-me o cambalear para preservar o que me restava da pose de chefe de família. […] minha mulher fez carranca de descontente que as esposas fazem. Ela não entende que meu mal é crónico e que beber é para mim o único remédio”. A esposa invade a subjectividade do personagem com seu olhar-alheio. O olhar da esposa penetra, a consciência do personagem; e o personagem sente-se, como diria Sartre, sem mais centro no interior de si e vê-se como elemento de um projecto que não é dele e não lhe pertence.

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