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Opinião: Sérgio Raimundo

mido das doresA escrita de Dóm Midó das Dores (trato-o, carinhosamente, por mano Midó) é revestida de um conhecimento reflexivo, profundo, e arrebatador como um trovão sobre uma palhota com tecto de capim. Em “A Bíblia dos Pretos”, Midó, segue os rastos deixados por Nietzsche para fazer nascer os seus passos. Cruza, de uma forma lógica, os valores tradicionais africanos com os valores pregados pelo cristianismo e abri-nos uma clave: de humor e de reflexão. Os traços comuns que me levaram a ressuscitar Nietzsche, neste presente ensaio, são os seguintes: a morte de Deus, a dessacralização dos valores tradicionais e principalmente o anticristianismo que se desenvolve dentro do romance.

Tal como Kant quis fazer da filosofia o tribunal da razão, Midó no uso da palavra transforma o espaço, imaginário, do seu romance em um tribunal, comunitário, da religião difundida pelos europeus – cristianismo.

Midó desenvolve no seu, magnífico e espectacular, romance a odisseia de um Jesus Cristo Negro que aparece na Cidade de Xai-Xai. Um personagem que questiona todos os valores pregados e eternizados pelo cristianismo. Midó anuncia a vinda de Jesus Negro, no romance, da seguinte forma: “O Cristo Negro sacou o sexo das calças e urinou enfrente da multidão que saía da igreja, parecia-lhe ferver o corpo e os olhos chamejavam, via-se a angústia absurda de existir no semblante daquela figura com um quê de fantasmagórico, o jovem mostrengo de forte, esculpido em pau-preto, abateu como uma súbita paralisia os cristãos que da igreja saiam [...]”. Logo na primeira página, Midó, dessacraliza a figura de Jesus Cristo com esse Jesus Cristo Negro.
Friedrich Nietzsche – 1844 à 1900 - Filósofo alemão. É considerado pela crítica como sendo um dos pensadores mais originais do século XIX. No fragmento 125 de “A Gaia Ciência”, Nietzsche, põe um louco a anunciar a boa nova: a morte de Deus. A morte de Deus, em Nietzsche, significa colocar em questão a fundamentação na qual os valores tradicionais encontravam legitimidades, qual seja, o mundo suprassensível.

É mister referir que o anúncio da morte de Deus ilumina a posição de Nietzsche frente ao cristianismo, na medida em que este se revela como religião que afirma uma vida fraca, debilitada, ao se dirigir para refúgios transcendentes como conforto e explicação para a finitude, para a vida. Midó também, possuído, pela essa visão crítica “mata Deus” em prol do seu continente, negro e escravizado: “Deus é a génese de todos problemas de África! Deus é branco e o Diabo é negro. Aí está a origem de todo mal”. Nietzsche em seus discursos identifica a verdadeira origem da tragédia e Midó descobre a do mal.
Nietzsche após o anúncio da morte de Deus na “Gaia Ciência” quer proclamar um novo papel para o homem. O lugar vazio de Deus não seria ocupado e o homem não se tornaria um Deus, mas se tornaria um super homem. O mesmo acontece com Midó. Mata Deus e Jesus Cristo Branco para em seu lugar colocar o super-homem, neste caso o Jesus Cristo Negro. Que é homem: “Minha senhora, minha mãe, minha irmã, eu venho vos evangelizar. O meu evangelho é claro, límpido e delgado como lágrimas duma macua ou melhor como as águas das cascatas de Namaacha: os negros não devem rezar”.

Midó tal como Nietzsche busca, não através de uma filosofia da moral, mas sim através do romance, trazer de volta o homem para a terra e para junto de si mesmo: “Não tenhais medo de exprimir os vossos pensamentos; semeai, posto que nos coube o mistério de ser a África o espectáculo da miséria do mundo. Vós que da igreja saístes e que nem certeza tendes do almoço! Sois todos pobres, desgraçados. Viveis mendigando a um Deus que não percebe as línguas bantu. Por que não repensar a vossa situação, camaradas pobres?”.

Ora, Nietzsche, usando Zaratustra grita que os verdadeiros pecadores são aqueles que pecam contra o nome da terra. Suplica a todos, homens, a permanecerem fiéis à terra e a não dar crédito àqueles que lhes falam de anseios supraterrestres. Esse grito e essa súplica ecoam no momento em que o Jesus Cristo Negro diz: “Meus irmãos cristãos negros, eu acuso o vosso deus por todo o sofrimento que grassa na nossa terra. O vosso Deus odeia os pretos”. Pensar a moral a partir da vida. A partir da vida que se encontra na terra. Uma moral entregue à trágica condição finita.

O anticristianismo de Nietzsche revela-se quando ele vê ou toma o cristianismo como uma religião que propaga a deflação da vontade de potência através da compaixão, a fraqueza, a humildade, a benevolência. Este filósofo vê essas virtudes e hábitos, típicas do cristianismo, como sendo antinaturais e anti-instintivos. Logo, a religião é prejudicial de acordo com o seu grau de calúnia e difamação à vida. Esse anticristianismo, que priva o amor à terra, e a uma moral moldada na vida leva Jesus Cristo Negro a dizer: “Nós não temos motivo algum para macerarmos os nossos joelhos prostando em altares de que em nada nos servem. O pobre só pelo facto de ser pobre já não precisa de rezar para ir ao Paraíso, visto que, não há sacrifício maior que a ferida execrável de ser misero”.

Midó é um romancista autêntico. Que transmuta e transpõe, tal como Nietzsche os valores; o bem passa a ser, com Jesus Negro, a exaltação do sentimento de poder, o mal, em tudo aquilo que o contrária. Midó desmitifica todos ideias tradicionais. Anota na sua curiosidade a casa onde morava o Jesus cristo Negro; diz-nos que morava num “presépio isolado no bairro Patrice Lomumba. Um presépio de caniço e estacas velhas, coberto de chapas enferrujadas, que em África continuam a dar abrigo a milhares de criaturas humanas[...]”. Nietzsche ataca a inautenticidade dos sentimentos morais e religiosos e a hipocrisia da moral “ascética”. Midó, paralelamente, contrapõe-se as narrativas bíblicas, sagradas, através da vida de Jesus Cristo Negro. Sobre a mãe dessa divindade negra afirma: “a única pessoa que foi vista a sair por duas vezes de manhã da casa de Jesus Negro foi Maria Madalena, uma jovem prostituta formosa de olhos espertos”. Relata-nos sobre a primeira oração do Cristo Negro, onde exalta o Grande Deus dos Negros, fala-nos da sua febre espiritual, da origem dos negros, da Quaresma de Jesus Negro, da expulsão de Jesus Negro de Xai-Xai e da sua morte. Midó com a máscara de ficção, tapando-lhe os olhos, segue as pegadas de Nietzsche e rejeita todos valores transmitidos pelo cristianismo

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